Seriam as Redes Sociais os Divãs da Atualidade?
“Como você está usando as redes sociais? Para satisfazer o seu desejo de reconhecimento ou para explorar as formas de reconhecer os seus desejos?”
Dunker, Christian. Falando Nisso, abril, 2019.
- 62% da população brasileira está ativa nas redes sociais.
- Com 130 milhões de usuários mensais, o Facebook é uma das redes com maior número de brasileiros.
- Brasil ganha 10 milhões de internautas por ano, aponta IBGE.
- Idosos representam o grupo que mais aumentou percentualmente entre os novos usuários.
Abro o facebook e me deparo com o relato de um amigo que expõe seu sofrimento com o término do namoro. Deslizo um pouco mais e a notícia agora é do falecimento da avó de uma amiga. Carinha triste, sinto muito. Um pouco mais a diante, um conhecido atualiza seu status. Agora está em um relacionamento sério.
O próximo post me mantém tensa do início ao fim. É relato de abuso sofrido na infância, por tios e amigos de seus tios. Um quase pedido de socorro em formato de micro conto infanto-juvenil. Carinha de espanto, carinhas de ódio.
Corro pro instagram e, no stories de uma amiga, uma pergunta: “o que você acha de mim?” Todos os “achados” são compartilhados na sequência. Mais à frente, outra interação: “se eu puder contar com você, me responda com um coração.” Então o coração enviado vira um post homenagem de retribuição. A quantidade de #tbt me lembra que é quinta-feira, dia de revirar a memória e trazer à tona as lembranças que marcaram a vida das pessoas que fazem da minha timeline esse divãa céu aberto. Então, por um instante, paro meus dedos nervosos e me pergunto: “ seriam as redes sociais os divãs da atualidade?”
É em cima desta questão que me disponho a escrever este trabalho. Navegando pelos conceitos psicanalíticos estudados ao longo deste terceiro ciclo, tento trazer um olhar mais ampliado para o fenômeno das redes sociais para entender seu impacto na vida psíquica do sujeito contemporâneo e digitalizado.
As redes sociais trazem uma nova forma de linguagem, não só no que diz respeito à uma comunicação mais reduzida, com o uso de palavras abreviadas e emoticons, mas também pela velocidade das interlocuções. Se segundo Lacan, o insconsciente está estruturado na linguagem, essa nova forma de comunicar é também um novo jeito de acessar este saber que não se sabe.
Acontece que, diferente das sessões de análise em que o paciente repete, repete, repete, com o intuito de elaborar o que está sendo dito e sentido, nas redes sociais não há tempo. E ouso dizer que não existe transferência na medida de que não existe o silêncio em si do analista (Nasio, J.D, em Como trabalha um Psicanalista? 1999) tão necessário para que ela aconteça.
Apesar do barulho tão característico dessas redes, o único som que cada um escuta é o eco das suas próprias vozes.
Post não tem tom. Post não tem voz. No ambiente digital, o olhar ganhou o espaço do ouvido. E estamos fazendo de tudo para sermos notados.
“A comunicação digital torna uma descarga de afetos instantânea possível. Já por conta de sua temporalidade, ela transporta mais afetos do que a comunicação analógica. A mídia digital é, desse ponto de vista, uma mídia de afetos”.
(Chul Han, Byung, No enxame. Perspectivas do Digital)
Se num divã o clique, ou insight, é o que nos ajuda a entender dos nossos sintomas e dissolver parte de nossas angústias, nas redes sociais, esse papel fica por conta dos clicks, que nos garantem os likes (hoje tão confundidos com afetos) e o possível reconhecimento.
Segundo Lacan, nosso maior desejo é o de ser desejado pelo outro. “Eu me constituo no outro a partir do que o outro diz sobre o que eu sou”. Assim, no facebook e até no instagram, os comentários, ao contrário das intervenções pontuais de um analista no setting, acabam por alimentar a demanda do sujeito. E, bem ou mal, ele encontra ali um espaço possível (e de respostas instantâneas) para dividir suas questões mais subjetivas e singulares. Deitados em suas redes sociais, associam livremente, sem críticas. Mas se veem às voltas com o julgamento das centenas de analistas sociais que constituem a sua rede de amigos.
Em seu livro No Enxame, Byung- Chul Han, diz “ A comunicação digital se torna cada vez mais sem corpo e sem rosto. O digital submete a tríade lacaniana do real, do imaginário e do simbólico a uma reconstrução radical. Ele desconstrói o real e totaliza o imaginário. O smartphone funciona como um espelho digital para a nova versão pós-infantil do estádio do espelho. Ele abre um espaço narcísico, uma esfera do imaginário na qual eu me tranco. Por meio do smartphone o outro não fala.”
Não fala, mas também não escuta. Não importa o próximo, mas o próximo post.
Não importa o silêncio, mas a resposta à demanda imediata.
Ali, no feeding, é mais fácil se juntar à massa do que assumir a sua própria singularidade. Porque assim ele se sente aceito, se sente como todo mundo. “ Não há dúvida de que existe em nós uma tendência, quando percebemos um sinal de um estado efetivo em outra pessoa, a sucumbir o mesmo afeto…. É a influência sugestiva da massa que nos força a obedecer essa tendência imitativa e que induz o afeto em nós”. (Freud – Psicologia das massas e análise do Eu).
Quando você faz parte da massa, passa a atuar em uma zona de conforto, diminuindo a tensão, vivendo no princípio do prazer ao invés do princípio da realidade. A zona de conforto é altamente controlável. Lá eu posso regular os barulhos, posso selecionar o que quero ver e quando quero intervir. Posso, inclusive, reeditar o que foi dito. O que me faz chegar à conclusão de que nas redes sociais não existe ato falho. Pelo contrário. Existe uma grande vigia ao não falhar nunca, o que acontece quando fazemos parte da massa. Ali, não nos implicamos em nossos atos.
“É evidente que está em ação ai algo como uma compulsão a imitar os outros, a permanecer em harmonia com o grande número. Os sentimentos mais grosseiros e mais simples têm maiores probabilidades de se difundir dessa maneira numa massa…. e a pessoa está segura ao seguir o exemplo que se mostra à sua volta, ou seja, sendo eventualmente inclusive “maria vai com as outras”.” (Freud, Psicologia das massas e análise do eu).
As redes sociais são, hoje, mais um dispositivo de eco do que de subjetividade. O que acaba contrariando a pergunta que deu início a este texto “Seriam as redes sociais os novos divãs da atualidade?”
Elas se portam como divã à medida em que, ali, pode-se falar tudo o que vem à cabeça.
Mas não podemos dizer que sem julgamento e sem o olhar do outro porque tudo que encontramos ali é julgamento (o nosso e o do outro) que parte do olhar de quem nos segue. Somos (per)seguidos por nossos ideais de ego que se tornam cada vez mais inalcançáveis a cada novo comentário ou reação ao post.
As redes sociais se portam como divã à medida que servem de convite ao falar.
Mas não alcançam a sua função quando não sustentam o ouvir.
“Para que haja instituição de autoridade do analista sobre seu paciente, é preciso que o analista se faça silencioso, enigmático, que fale pouco porque quanto mais ele falar, mais ele se afastará. Quanto menos falamos, mais nos aproximamos… A escuta capta o inconsciente do outro em seu próprio silêncio. A escuta capta o outro em seu próprio silêncio. ( Nasio, J. D. Como trabalha um psicanalista?).
Enquanto falamos e até mesmo GRITAMOS por meio das nossas interações, não fazemos silêncio. Ecoamos.
Na medida em que as respostas e as reações imediatas das redes sociais atendem a demanda de amor, mas também suscitam o desprazer no sujeito, deixam de ocupar a função de divã da atualidade, servindo apenas como uma outra realidade, dessa vez virtual, onde posso ser tudo que não sei que sou. Posso ser tudo que o outro deposita em mim.
Assim como no divã, os sintomas saltam nas redes sociais. Mas, ao invés de serem aliviados pelo falar, ali acabam sendo alimentados por outros sintomas, gerando um crescente mal-estar, compartilhados por todos.
Passamos muito tempo olhando para as telas transparente dos celulares, nos enxergando através delas, como um espelho em que se pode ver, mas não seé olhado. Em seu livro No Enxame, o filósofo Byung-Chul Han, diz que a tela transparente não permite nenhum desejo, que é sempre o desejo pelo outro. A luz homogênea, plana e transparente não é meio do desejo. A transparência significa o fim do desejo. A face que se expõe e que anseia por atenção não é um rosto. Nela não habita nenhum olhar. A intencionalidade da exposição destrói aquela interioridade, aquela reserva que constitui o olhar.
Assim, as redes sociais não só não fazem o papel de divã da atualidade, como atuam como um papel transparente, tapando nossos furos, encobrindo nossa falta, soterrando nossos desejos. Reconhecê-los, resgatá-los e apropriar de todos eles nesta estufa de sintomas da atualidade éfunção de cada um.
Enquanto a busca for pelas vias do google e não pela da subjetividade, continuaremos navegando pelo nosso desejo de reconhecimento e não pelo reconhecimento dos nossos desejos mais profundos.
CONCLUSÃO
Comecei este trabalho tentando responder, de forma afirmativa, a questão que, a princípio, fazia muito sentido pra mim: as redes sociais seriam os novos divãs da atualidade? Mas, ao longo do percurso, lendo, pesquisando e tentando embasar o meu ponto, fui percebendo que, apesar desta ferramenta ser usada muitas vezes como um divã, ele não ocupa este lugar.
Porque existe pouca escuta. Pouco silêncio. Pouca subjetividade.
Porque nas redes sociais as pessoas não se implicam.
Elas se replicam.
Referências bibliográficas
- FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. 1920/1923
- FREUD, Sigmund. Observações Psicanalísticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre a técnica e outros textos- Obras Completas – Vol.10- 1911/1913
- NASIO,J.D. Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan – 1994
- NASIO,J.D. 5 lições sobre a Teoria de Jacques Lacan – 1994
- LACAN, Jacques. O estádio do Espelho como formador da função do eu. Escritos, Zurique – 1949
- KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão, a atualidade das depressões. 2009
- CHUL HAN, Byung.No enxame, perspectivas do Digital. 2018
- DUNKER, Christian. Falando Nisso, abril 2019
- BIRMAN, Joel. O mal-estar na atualidade. 2001
- NASIO, J.D. Como trabalha um psicanalista.1999