MAL-ESTAR ² – A Vida em Civilização Durante a Guerra Cultural
No primeiro dia de 2019, em seu discurso de posse, Jair Bolsonaro não fez qualquer menção à tragédia crônica da desigualdade social no Brasil, mas prometeu combater o politicamente correto. Em 2018, o ano de sua eleição, o país subiu da décima para a nona posição entre os mais desiguais do mundo no ranking da organização internacional Oxfam. Eleito com 55% dos votos válidos no segundo turno, o novo presidente representa – mais do que isso, personifica – no Brasil um dos lados do que vem sendo chamado de guerra ideológica ou guerra cultural, fenômeno observado a partir da década de 1990 em diversos países ocidentais. Neste texto, eu me permito reinterpretar O Mal-Estar na Civilização (1930), de Sigmund Freud, no contexto de polarização ideológica da atualidade.
Uso como base a edição da Penguin com a Companhia das Letras, publicada em 2011, com tradução de Paulo César de Souza. Como se sabe, na obra, Freud discorre sobre a repressão e a sublimação de pulsões relacionadas à sexualidade e à violência em favor da vida em sociedade, do trabalho e do progresso. “O benefício da ordem é inegável; ela permite ao ser humano o melhor aproveitamento de espaço e de tempo, enquanto poupa suas energias psíquicas.” Ao mesmo tempo, Freud adverte que há custos consideráveis: essas renúncias e adaptações, que viabilizam o convívio e a produção, também constituem as principais causas de doenças psíquicas na contemporaneidade. Mas e hoje? O que mudou de 1930 a 2019? No contexto de cisão cultural que se experimenta agora, o mal-estar do sujeito que já renunciava a aspectos fundamentais da própria natureza é sobreposto por novas camadas de desconforto: a decepção e a desconfiança que passa a sentir em relação à sociedade em que está inserido e pela qual, justamente, faz tantos sacrifícios pulsionais.
Mas, antes, precisamos compreender melhor do que falamos quando tratamos de guerra cultural. Esse confronto diz respeito a uma oposição radical entre ideais progressistas e conservadores. Ou, em outras palavras, no Brasil e na prática, entre esquerda e direita. À esquerda, defendem-se temas como assistência social, direitos de minorias, controles estatais, legalização do aborto e tributação progressiva de grandes fortunas etc.; à direita, o livre mercado, a manutenção de valores tradicionais e religiosos, a liberação do acesso a armas e a interdição de ideias progressistas na educação, entre outras contenções culturais.
Em março, o site de análises jornalísticas Nexo publicou uma reportagem sobre a guerra cultural no Brasil, na qual ela é apresentada como um modelo “importado” dos Estados Unidos, onde foram registrados os primeiros casos emblemáticos. Em 1989, a Universidade de Stanford tentou alterar o currículo de um dos cursos de cultura ocidental, que passaria a incluir mais autores não-brancos como a indígena guatemalteca Rigoberta Menchú Tum, que viria a ganhar Prêmio Nobel da Paz em 1992. Na época, republicanos contestaram essa inclusão, que, para eles, representava mais um passo rumo à derrocada da cultura ocidental.
No mesmo período, uma exposição do fotógrafo americano Robert Mapplethorpe, na Corcoran Gallery of Art, em Washington, foi censurada após protestos de manifestantes conservadores por abordar o universo da cultura gay underground, numa situação semelhante à vivida no Brasil, em 2018, quando a exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, de temática LGBT, sob curadoria de Gaudêncio Fidelis e patrocinada pelo Santander, foi fechada às pressas em Porto Alegre, depois de uma grande polêmica nas redes, que incluíram ameaças de morte contra os organizadores.
Em entrevista ao Nexo, o professor e pesquisador Eduardo Wolf, doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo, afirma que a guerra cultural não é apenas uma disputa entre duas concepções políticas que se alternam no poder ou uma divergência profunda quanto a leis ou políticas públicas, “mas uma luta pela alma da nação, em que cada lado só pode almejar o silêncio do outro”. No Brasil, ocorre agora um processo muito semelhante ao que se passou nos Estados Unidos na transição de poder do democrata Barack Obama para o republicano Donald Trump. Por aqui, prossegue Wolf, essas tensões se intensificaram com o fim do ciclo político de organização do país entre os anos de Fernando Henrique Cardoso e os anos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. A crise econômica, agravada durante o governo Dilma, funcionou como um catalisador das disputas políticas em torno do embate cultural. Bem, como um catalisador ou como uma justificativa.
Ao longo da história, diversas culturas precisaram lidar internamente com conflitos graves, discordâncias radicais, que tantas vezes eclodiram em guerras civis e mesmo revoluções. Mas, nos períodos de pacificação, durante a chamada “vida normal”, o poder vigente garantia a imposição de seus valores (ou interesses) culturais. São os novos meios de comunicação, em contextos democráticos, que hoje amplificam a discordância. A guerra cultural é um fenômeno tão contemporâneo porque agora a polarização é mainstream, faz parte do dia a dia das pessoas, um fenômeno que se acentuou com a popularização dos smartphones. A briga, que inclui colegas, amigos, vizinhos e parentes, é portátil – pode ser levada no bolso aonde quer que se vá. E, portanto, ininterrupta.
Para Freud, em Mal-Estar, “a vida humana comum se torna possível apenas quando há uma maioria que é mais forte do que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo”. O poder dessa comunidade se estabelece como lei, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. “A liberdade individual não é um bem cultural. Ela era maior antes de qualquer civilização, mas geralmente era sem valor, porque o indivíduo mal tinha condição de defendê-la.” Hoje, no Ocidente, o sujeito é “livre” para se expressar politicamente. E pode curtir ou confrontar as ideias não só dos seus iguais como também as das autoridades vigentes. Neste novo contexto, então, qual seria exatamente o poder e a legitimidade da sociedade sobre o indivíduo quando ela se revela tão gravemente partida? Ao rejeitar o lado oposto ao seu, o sujeito desdenha de uma parte considerável da sociedade à qual, em tese, deveria estar submetido como um todo. O que fazer com essa contradição?
Voltemos a Freud. “Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre as exigências individuais e aquelas do grupo, culturais; é um dos problemas que concernem ao seu próprio destino, a questão de se este equilíbrio é alcançável, mediante a uma determinada configuração cultural ou se o conflito é insolúvel.”
A divisão da sociedade estabelecida pela guerra cultural torna esse equilíbrio ainda mais delicado. Num contexto de enfrentamentos apaixonados, a realidade parece perder importância diante dos arroubos da convicção. Será que, de certo modo, Freud anteviu o fenômeno das fake news? Este trecho parece indicar que sim (ao menos para os meus olhos que desejam ver): “Facilita a minha imparcialidade o fato de saber muito pouco sobre tudo isso [a subjetividade numa perspectiva sociológica] – de saber apenas uma coisa com certeza: que os juízos de valor dos homens são inevitavelmente governados por seus desejos de felicidade e que, portanto, são uma tentativa de escorar suas ilusões com argumentos.”
Em plena guerra cultural, o sujeito que reprime suas pulsões em favor da vida em sociedade precisa lidar com uma hostilidade social que muitas vezes parece chamar de volta à superfície os mesmos impulsos de agressividade suplantados ao longo de sua vida com tanto esforço psíquico. Hoje, a pulsão de morte é cotidianamente tentada, incitada.
Mais uma vez, procuro respostas no Mal-Estar: “A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. (…) Atualmente, os seres humanos atingiram um tal controle das forças naturais, que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso: daí, em boa parte, o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo.”
O mais provável é que estejamos apenas acordando, como sociedade, da ilusão de uma pacificação democrática, como se, neste ponto, a civilização já estivesse dada e apenas avançasse de modo contínuo e gradual rumo ao conhecimento e ao progresso. Assim como o sujeito, contudo, a sociedade também opera segundo forças conflituosas e contraditórias. Na perspectiva freudiana, não se pode falar em consciência e inconsciência coletivas, mas é possível estabelecer paralelos comparativos entre as organizações internas do indivíduo e as da sociedade, o seu coletivo. Ambas precisam operar no terreno do conflito e da ambiguidade, do cá e do lá, do eu e do outro, em busca de um equilíbrio (im)possível entre renúncia e expressão. Agora, quando a vida em civilização inclui o grupo da família no WhatsApp, esse desafio se revela ainda mais psiquicamente demandante. Haja pulsão de vida.