“Considerações sobre a Técnica Psicanalítica no Trabalho com Grupos – Transferência, Associação Livre e Manejo”
Trabalhei entre 2018 e 2019 no Núcleo de Psicanálise e Ação Social – NUPAS, projeto através do qual levamos a psicanálise a instituições de ensino, mediante a formação de grupos de professores, alunos e funcionários dessas instituições, tendo cada grupo um analista coordenador e um ouvinte.
No período em que participei desse projeto, trabalhei em duas escolas públicas estaduais, atuando como: (i) coordenadora em um grupo de pré-adolescentes, (ii) ouvinte em um grupo de adolescentes, (iii) ouvinte por um tempo e depois coordenadora em um grupo de crianças; e (iv) ouvinte em um grupo de funcionários. Durante esse período, também pude escutar em supervisão os demais grupos formados nessas e em outras instituições de ensino.
É com esse olhar que gostaria de articular dois aspectos fundamentais da técnica psicanalítica (a transferência e a regra fundamental da livre associação), trazendo as minhas impressões a respeito de sua aplicação no trabalho psicanalítico com grupos em instituições, bem como algumas considerações sobre o manejo do analista nesse tipo de trabalho.
(i) Transferência no Processo Grupal
A transferência é o investimento libidinal insatisfeito que, numa análise, é dirigido à pessoa do analista, e tem relação com a constituição do sujeito, com as primeiras relações objetais que o sujeito estabelece. É através dos vínculos que nos constituímos como sujeito – sendo o vínculo com a mãe o primeiro e mais importante deles – e é através do vínculo com o analista que a análise acontece.
A transferência é também uma forma de defesa, “a mais poderosa arma da resistência”, que faz com que o paciente repita ou atue na análise (suas inibições, atitudes, sintomas e traços de caráter), exteriorizando, para a relação analítica, diversos elementos psíquicos do infantil, incluindo “imagos, desejos inconscientes, fantasias, relações de objeto, emoções, defesas, etc.” A transferência é um “fragmento da repetição” e a repetição é “uma transferência do passado esquecido”.
Através do manejo da transferência, as atuações do paciente – resultantes da sua compulsão à repetição – podem passar por um processo de simbolização que lhe permita elaborar “os impulsos instintuais reprimidos” que alimentam a resistência.
É, portanto, o manejo da transferência – combinado com a associação livre – que vai permitir ao paciente atingir os objetivos da análise segundo Freud: superar as “resistências devidas à repressão” e “preencher lacunas na memória” e possibilitar um reposicionamento subjetivo do sujeito.
Mas como fica a transferência em um trabalho com grupos? Na minha experiência com grupos em instituições de ensino pude verificar que não só a pessoa do analista (ou coordenador do grupo), mas também o ouvinte, os demais membros do grupo, o grupo em si e a instituição também são objeto de investimento libidinal.
Algumas situações sugerem aos analistas que há uma transferência estabelecida. Lembro de um grupo de funcionários em que atuei como observadora. Um dia, no meio da sessão, uma das funcionários me perguntou como eu limpava as minhas orelhas. Achei aquilo tão significativo. Ela queria se certificar de que eu a ouvia bem.
Também pude constatar, durante a minha experiência com grupos, que quando o grupo estava solidamente constituído, mesmo um evento de substituição do analista não interrompia o trabalho. Nessa situação, a transferência com o novo analista parecia imediata, porque já havia uma transferência estabelecida com o grupo.
A constituição do grupo é, portanto, crucial nesse tipo de trabalho. Ao mesmo tempo, é uma dos aspectos mais difíceis no trabalho com grupos em instituições, seja porque a instituição nem sempre valoriza aquele espaço, às vezes exigindo de seus funcionários que façam outras tarefas durante aquele horário, seja porque os membros do grupo não querem aquele trabalho. Além das resistências que sempre estão em ação em qualquer análise individual, em um trabalho com grupos existe mais um complicador, porque a demanda não parte do indivíduo, mas da instituição.
Nesses casos, além do trabalho com a Diretoria da instituição ser essencial para minimizar interferências externas nos grupos, o coordenador de cada grupo deve atuar de forma a ajudar na superação das dificuldades que surgem no processo grupal, bem como sustentar uma posição que possibilite aos membros do grupo encontrarem espaços psíquicos partilhados. Voltarei a esse ponto mais adiante.
(ii) Livre associação como regra fundamental
A regra fundamental da psicanálise é que o analisando possa falar livremente, sobre qualquer coisa que lhe venha a cabeça. Isto porque a palavra é a via mestra de acesso ao inconsciente. É através da fala que expressamos nossa contradições, chistes, atos falhos. A fala nos trai. Mas nem por isso ela é a única forma de acesso ao inconsciente e às nossas resistências.
De acordo com Pablo Castanho, o espaço analítico é aquele que permite as “emergências psíquicas”. Mas esse material não emerge só através da palavra, mas também através de sonhos, desenhos, atuações.
Em grupos de crianças, em que a fala ainda não está tão bem desenvolvida e a capacidade de simbolização ainda é pequena, o que emerge é muito no corpo, principalmente através de atuações, seja durante as brincadeiras que propomos ou em outros momentos.
Também utilizamos muito o recurso do desenho e da colagem em grupos de crianças e adolescentes e, ao final, pedimos para que eles falem sobre os desenhos e colagens produzidos durante o trabalho.
Mas, se dentro de um grupo a fala de um ecoa nos demais, seria possível falar em associação livre? E, nesse sentido, seriam os grupos formados em instituições espaços que permitem as “emergências psíquicas”?
Parece que, em um trabalho com grupos, se por um lado mais indivíduos são colocados dentro de uma cadeia associativa, maior a gama de associações que pode ser feita. Pablo Castanho entende que: “a cadeia associativa do sujeito, tomado em sua singularidade, encontra uma cadeia associativa que poderia ser chamada de grupal e que podem ser considerada como produto das alianças inconscientes estruturantes do grupo e dos vínculos extragrupais”.
Por outro lado, contudo, como falar em associação livre se dentro de um grupo as pessoas possuem laços sociais? Nesse sentido, como pedir aos participantes de um grupo (por exemplo de professores, alunos ou funcionários de uma escola) que falem livremente, sendo que essas pessoas tem laços sociais fora daquele espaço? Um grupo psicanalítico ideal seria aquele em que as pessoas não se conhecem fora do espaço do grupo, mas não é o que ocorre em instituições de ensino.
Coordenei um grupo de pré-adolescentes em que na segunda sessão surgiu um impasse com relação à possibilidade da livre associação. A questão era da ordem da confiança. Mais ou menos metade do grupo se sentia desconfortável com a presença de uma menina que eles achavam que não seria confiável, porque ela contava “por aí” as coisas que aconteciam na escola. Essa parte do grupo pleiteava assim pela divisão do grupo ao meio. Gostariam que as pessoas com mais afinidade ficassem em um grupo e as demais em outro grupo. Expliquei que não seria possível, mas que o grupo tinha uma regra básica à qual todos deveriam aderir de forma irrestrita, ou seriam expulsos do grupo. Essa regra era a do sigilo com relação a tudo que era falado dentro daquele espaço. Disse também que ninguém precisaria sair contando seus maiores segredos naquele grupo logo de cara, que confiança é algo que se constrói com o tempo e perguntei se eles topariam se dar essa chance. No fim eles se permitiram percorrer esse caminho.
Em um grupo de funcionários, por exemplo, no qual atuei como observadora, a impossibilidade ficou mais evidente na medida em que parte deles tinha um maior “acesso” aos seus superiores.
Interessante notar como cada um desses grupos caminhou para uma direção totalmente diferente, tendo ambos atravessado a mesma questão da confiança. Enquanto o grupo de pré-adolescentes foi se fortalecendo através da construção de vínculos intersubjetivos, o referido grupo de funcionários foi minguando até virar um “grupo” de uma pessoa só.
Já nos grupos de adolescentes que escutei (tanto nesse grupo em que atuei como coordenadora, quanto nos demais que ouvi em supervisão nesse período) os participantes realmente criaram um espaço de confiança, ainda que suas relações pessoais fora daquele espaço fossem conflituosas ou difíceis.
(iii) Considerações sobre o manejo no trabalho com grupos
Como mencionado acima, no trabalho com grupos, o coordenador do grupo deve ajudar na superação dos obstáculos que surgem no processo grupal. Para Pichon-Riviére as intervenções do coordenador deveriam se limitar a esse aspecto, deixando que o grupo faça as suas próprias interpretações. Essas intervenções são fundamentais para a formação do grupo e para a continuidade do trabalho.
No entanto, da minha experiência no trabalho com grupos, entendo que as intervenções do analista podem ir um pouco além disso. Até porque, para que o trabalho seja considerado analítico, é necessário que o material que “emerge” nos grupos passe por um processo de “apropriação subjetiva pela simbolização” e nem sempre o grupo é capaz de elaborar sozinho as questões que surgem.
Às vezes é possível simplesmente devolver uma questão para o grupo, possibilitando ao grupo fazer as suas próprias interpretações. Em outras situações, é necessário um outro tipo de intervenção.
Para Pablo Castanho as intervenções do analista em um grupo deve incidir principalmente sobre os espaços psíquicos comuns e partilhados no grupo. Não obstante, às vezes uma interpretação individual é cabível. Em um grupo de pré-adolescentes que coordenei uma menina falou que gostava de filme de terror, que gostava de ver as pessoas sofrerem e que gostava de ver sangue. Intervim dizendo a ela que ela daria uma boa médica.
De maneira geral, contudo, entendo que, além de intervir nas resistências ao processo grupal, o coordenador do grupo deve sustentar uma posição que possibilite aos seus membros encontrarem onde eles fazem laço. Isso porque, o que possibilita as emergências psíquicas em um trabalho psicanalítico de grupo é o justamente laço intergrupal, a transferência com o grupo.
Notas:
1 FREUD, Sigmund, “Obras Completas”, Vol. XII, “O Caso Schreber, Artigos sobre a Técnica e Outros Trabalhos”, Editora Imago, pág. 112.
2 FREUD, Sigmund, “Obras Completas”, Vol. XII, “O Caso Schreber, Artigos sobre a Técnica e Outros Trabalhos”, Editora Imago, pág. 116.
3 CASTANHO, Pablo, “Uma Introdução Psicanalítica ao Trabalho com Grupos em Instituições”, Editora Linear A-barca, pág. 197.
4 FREUD, Sigmund, “Obras Completas”, Vol. XII, “O Caso Schreber, Artigos sobre a Técnica e Outros Trabalhos”, Editora Imago, pág. 166.
5 FREUD, Sigmund, “Obras Completas”, Vol. XII, “O Caso Schreber, Artigos sobre a Técnica e Outros Trabalhos”, Editora Imago, pág. 171.
6 FREUD, Sigmund, “Obras Completas”, Vol. XII, “O Caso Schreber, Artigos sobre a Técnica e Outros Trabalhos”, Editora Imago, pág. 163.
7 CASTANHO, Pablo, “Uma Introdução Psicanalítica ao Trabalho com Grupos em Instituições”, Editora Linear A-barca, pág. 153.
8 CASTANHO, Pablo, “Uma Introdução Psicanalítica ao Trabalho com Grupos em Instituições”, Editora Linear A-barca, pág. 264.
9 CASTANHO, Pablo, “Uma Introdução Psicanalítica ao Trabalho com Grupos em Instituições”, Editora Linear A-barca, pág. 147
10 CASTANHO, Pablo, “Uma Introdução Psicanalítica ao Trabalho com Grupos em Instituições”, Editora Linear A-barca, pág. 277.
Referências Bibliográficas:
CASTANHO, Pablo, “Uma Introdução Psicanalítica ao Trabalho com Grupos em Instituições”, Editora Linear A-barca.
FIGUEIREDO, Luís Claudio e COELHO JUNIOR, Nelson, “Ética e Técnica em Psicanálise”, Editora Escuta.
FREUD, Sigmund, “Obras Completas”, Vol. XII, “O Caso Schreber, Artigos sobre a Técnica e Outros Trabalhos”, Editora Imago.
KAËS, René, “O Aparelho Psíquico Grupal”, Editora Ideias & Letras.
NASIO, J. D., “Como Trabalha um Psicanalista”, Editora Zahar.